quarta-feira, 11 de junho de 2008

Tirando leite de pedra - entrevista com Cannibal, da Devotos


A heróica banda de hardcore do Alto José do Pinho, uma das comunidades mais pobres do Recife, lugar onde a causa é diária e a auto-estima é coletiva, mistura arte e cidadania o tempo todo em seu trabalho. A antes Devotos do Ódio, e agora só Devotos, está comemorando 20 anos. Contestadora e preocupada com as mazelas sociais, é formada por Celo Brown (bateria), Neílton (guitarra) e Cannibal (baixo e voz). E é Cannibal quem conta um pouco da saga da banda, os desafios e conquistas do presente e os planos (ou a falta deles) para o futuro.


Dá pra viver só de música em Recife?

Só de música, não. Tem que ter outros meios de você ganhar uma grana, até mesmo pra auto-sustentar o seu maior prazer, se você for músico. Mas, só de música, em Recife, fica difícil.


A banda só lançou o primeiro CD em 1997, depois de quase dez anos de estrada. Você acha que se fosse atualmente demoraria tanto?

Não, claro que não. Naquela época era muito difícil gravar CD. Era muito difícil até ter banda! Era muito difícil até pra comprar instrumento, tanto que pra fazer a banda, a gente começou com instrumentos emprestados e depois fez nossos próprios instrumentos. Era muito difícil. E principalmente quando chega na fase em que você decide o que quer ser da vida, músico. Então tem que gravar um CD. Naquela época não tinha a tecnologia que se tem hoje. Não tinha internet, não tinha nada. A gente só gravaria se fosse pra dentro do estúdio, e estúdio era muito caro. Então os nove anos que a gente passou pra gravar um disco naquela época, em menos de um ano a gente gravaria um disco hoje.


Como tem sido a relação de vocês com a internet?

A internet é o principal meio de comunicação pra gente. Hoje em dia a gente marca muito show pela internet. A gente tem um intercâmbio direto com a rapaziada dos festivais, os produtores e tal. Praticamente a gente faz tudo pela internet para poder marcar o show. Fora isso, a gente tem também no site vídeos, músicas, fotos. Tudo a gente coloca no site pras pessoas se informarem sobre o que está acontecendo com a Devotos. Principalmente porque a Devotos é uma banda que toca muito pouco, principalmente aqui em Recife. Muita gente às vezes acha que a banda não está mais tocando, acabou ou coisas desse tipo, e de repente a banda aparece. Então justamente pra isso, pra mostrar pras pessoas que a banda está tocando, está rolando, está fazendo show, está gravando clipe, ou está fazendo qualquer outro tipo de trabalho.


Você falou que a banda tem tocado pouco aqui no Recife. Então em qual estado do Brasil que vocês têm tocado mais?

O lugar que a Devotos mais toca é São Paulo. A gente vai lá pelo menos umas duas ou três vezes por ano. E quando vai, toca um mês, um mês e meio, faz na base de 10,15 shows. Então é o lugar que a gente mais toca. Goiás também, Tocantins, João Pessoa, foram os últimos shows. E agora estamos indo pra o interior aqui de Pernambuco, na época de São João sempre rola umas paradas.


Como está a ONG que vocês fazem parte, a Alto-Falante?

A Alto-Falante é a nossa menina dos olhos. Às vezes a gente até meio que prioriza a ONG e deixa algumas coisas nossas de lado. Agora estamos com as oficinas de rádio comunitária, que estão rolando lá no Alto José do Pinho, e estamos com os eventos, os shows - o último que teve foi agora dia 25. Temos o projeto de colocar rádios difusoras, como é a do Alto José do Pinho, em outras comunidades. Já colocamos uma na Ilha de Deus, uma na comunidade do Pilar e uma lá na Muribeca, e tem uma pra colocar em uma comunidade aqui de Recife que eu não lembro o nome agora. Por enquanto, é isso que a ONG está fazendo. Estamos com um projeto agora de uma sede, que a gente não tem sede, a maioria das coisas que a gente faz é na rua ou com algum espaço de alguma entidade lá do Alto José do Pinho. Estamos precisando de uma sede há muito tempo, pra poder fazer um trabalho mais concreto, pra fazer uma trabalho diário, pra fazer um trabalho permanente.


Como anda a cena musical do Alto José do Pinho?

Depois do movimento mangue e de toda aquela efervescência, já surgiram bandas como Os Maletas e The Míopes, que é uma banda só de meninas. Está rolando lá no Alto José do Pinho uma oficina muito legal, é um projeto chamado Escola Aberta. Quem dá essa oficina é um menino lá da comunidade chamado Cal, que é do Maracatu Estrela Brilhante. É uma coisa maravilhosa, muito legal, porque várias crianças e vários adolescentes estão participando dessas oficinas, não só lá no Alto, mas também em comunidades vizinhas. Então a cultura do Alto sempre está rolando, a gente não sabe onde vai parar. Mas o legal de tudo isso é que a gente está passando essa responsabilidade para eles mesmos, pra própria comunidade. Eles não ficam só esperando alguém da ONG para aquilo acontecer. Eles também correm atrás pra querer mostrar seus trabalhos, e eu acho que isso é uma coisa positiva.


Embora de uma certa forma pertencentes ao movimento mangue beat, vocês nunca misturaram o som da banda com ritmos regionais, sempre fizeram um hardcore puro. Nunca tiveram vontade de tentar outras sonoridades? O que mudou no som da Devotos depois desses anos?

A Devotos é uma banda que nunca imaginou colocar qualquer elemento que lembrasse o movimento mangue, principalmente algum elemento percussivo. A gente nunca pensou em fazer isso, nem antes nem depois do movimento. A gente achava que isso aí era pegar carona numa coisa que estava acontecendo, e que não tinha o nosso sentimento, a gente não tinha sentimento por aquilo pra se colocar na música, a não ser de ver, de curtir, de gostar e de ter os amigos dentro do movimento mangue. Isso dentro da Devotos ia soar uma coisa muito falsa. A Devotos sempre foi uma banda de hardcore e vai continuar sendo uma banda de hardcore. Umas das coisas que a gente conseguiu mudar foi o nome. A gente deixou de ser Devotos do Ódio pra ficar só Devotos. Mas a intenção era furar barreiras que a gente tinha por causa do preconceito com o nome. É o nome de um livro de José Louzeiro, mas as pessoas sempre achavam que a gente fazia apologia à violência por causa desse nome. Aí a gente resolveu deixar só Devotos e fazer nosso próprio trabalho, porque você pode mudar seu nome mas não pode mudar seu caráter. Então não tem como você mudar o som da Devotos porque as pessoas são as mesma, que faz as letras sou eu, então não tem como eu mudar só por causa do nome.


Agora que o nome da banda passou de Devotos do Ódio para Devotos, o ódio passou?

Nada, a gente está com cada vez mais ódio! Tem muita coisa a ser questionada, a ser mudada. A gente tem que fazer o nosso papel pra mudar o que está acontecendo no mundo. A gente sabe que é difícil, mas não é impossível. A gente conseguiu mudar o preconceito dentro de uma sociedade com relação ao Alto José do Pinho. Hoje em dia você vê muitas pessoas visitando o Alto José do Pinho, principalmente pessoas de faculdade, de classe média, fazendo oficinas de maracatu, afoxé. Então a gente vê que houve uma mudança em relação ao preconceito que se tinha contra o Alto José do Pinho. Se a gente conseguiu isso com o Alto, a gente pode conseguir com várias outras comunidades.


O show de comemoração dos 20 anos da banda, que aconteceu no Rec Beat deste ano, teve um público de mais de 5 mil pessoas. No site da banda, você fala que haverá outros eventos para celebrar as duas décadas da Devotos. Quais serão esses eventos? Que novidades podemos esperar esse ano?

Pra este ano está prevista a gravação do CD ao vivo, que vai ser patrocinado pela Petrobrás. A gravação desse CD ao vivo vai ser no Alto José do Pinho, com a participação do Zé Brown (vocalista do grupo de hip hop Faces do Subúrbio), do Adilson (da banda de hardcore Matalanamão), do Lirinha (vocalista do Cordel do Fogo Encantado), da Pitty e do Clemente (vocalista da banda punk paulistana Inocentes, principal influência da Devotos). E estamos colocando agora um projeto dentro do Funcultura, pra ver se a gente consegue a captação de imagens, pra aproveitar toda a estrutura de som e de luz, que vai ser muito boa, pra gravar o DVD.


Para finalizar, quais os planos da Devotos para os próximos 20 anos?

A gente nunca pensou no que vai acontecer daqui pra frente com a Devotos. Estamos sempre pensando no presente, naquilo que está acontecendo agora. O futuro a Deus pertence, então a gente sempre tem o pé no chão, porque é difícil batalhar. A cada dia a gente tem que tirar leite de pedra pra banda estar viva, estar acontecendo, e a gente sabe que a banda é necessária para mudar um quadro dentro de Pernambuco, dentro do Brasil.

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